Em dois anos, houve um acréscimo na quantidade de resíduos hospitalares produzidos, desde máscaras, fatos e luvas, a seringas e agulhas utilizadas nas vacinas contra a covid-19 e material usado nos testes. As empresas responsáveis pelo tratamento destes resíduos tiveram de se adaptar, alargando horários e contratando mais funcionários. Os serviços foram assegurados sem ruturas, mas as boas práticas de triagem e reciclagem dos resíduos ficaram para trás.
Reduzir a produção de resíduos hospitalares era uma prioridade, mas a pandemia veio estancar esses esforços. Desde logo porque o perigo de contágio nos hospitais e outras unidades onde são prestados cuidados obrigou os profissionais de saúde a protegerem-se com equipamentos não tão utilizados até então, como máscaras, fatos e luvas. Isto é uma parte da história. A outra tem início em 2021, com a campanha de vacinação contra a covid-19 que arrancou no país e a utilização massiva de testes. A Organização Mundial da Saúde (OMS) alertou recentemente para o aumento de milhares de toneladas de resíduos médicos que resultaram da pandemia em vários países do mundo. Portugal não foi incluído nas contas, mas os números mostram que não escapou ao padrão.
Segundo dados cedidos ao Expresso pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA), em 2020 ( em comparação com o ano anterior ) foram produzidos mais cerca de 22% de resíduos hospitalares de risco biológico, contaminados ou potencialmente contaminados. São resíduos, segundo a classificação da APA, “cuja recolha e eliminação estão sujeitas a requisitos específicos com vista à prevenção de infeções” e neles se incluem os equipamentos de proteção individual (EPI) utilizados por profissionais de saúde na pandemia, como máscaras, fatos, luvas e óculos. Foram produzidas, em concreto, cerca de 30 mil toneladas destes resíduos (30.634), quando em 2019 tinham sido produzidas perto de 25 mil (25.019) e, em 2018, cerca de 24 mil.
Quanto a “objetos cortantes e perfurantes”, onde se incluem as seringas usadas nas vacinas contra a covid-19, caso tenham a agulha acoplada, a produção deste tipo de resíduos aumentou cerca de 15% em 2020, em comparação com 2019. Foram produzidas cerca de 1.079 toneladas, quando no ano anterior tinham sido 940. O aumento não é muito significativo, sendo necessário ter em conta que, em 2020, ano a que se referem os dados, ainda não tinha sido iniciada a campanha de vacinação em massa contra a covid-19, que continua em curso. Os dados da produção de resíduos hospitalares referentes a 2021 ainda não estão fechados, prevendo-se que estejam disponíveis a partir da segunda metade do ano, adianta a APA.
Mais 40% de resíduos em 2021
Segundo o SUCH (Serviço de Utilização Comum dos Hospitais), uma das entidades que asseguram o tratamento dos resíduos hospitalares, foram recolhidas a nível nacional cerca 14 mil toneladas resíduos perigosos em 2020 e em 2021 (valor médio), mais quatro mil toneladas do que em 2019, antes da pandemia, quando foram produzidas 10 mil toneladas. De acordo com os dados cedidos ao Expresso e feitas as contas, são mais 40% de resíduos.
A diferença pode parecer “relativamente baixa” considerando o contexto de pandemia. Mas há uma explicação, que tem que ver com a unidade de medida que é utilizada para quantificar a produção: o quilograma. “Os resíduos produzidos são maioritariamente Equipamentos de Proteção Individual dos profissionais de saúde e dispositivos médicos descartáveis utilizados nos doentes de covid-19, cujos pesos são muito reduzidos, mas de grande volume ao nível da respetiva contentorização”, explica a associação.
Depois de recolhidos, para onde vão os resíduos hospitalares?
Os resíduos hospitalares são recolhidos nos hospitais, centros de saúde, laboratórios, farmácias, clínicas, centros de investigação e de ensino, bem como em clínicas veterinárias e outras unidades que prestam cuidados a animais. Também resultam de atividades que envolvam procedimentos invasivos, como acupuntura, piercings e tatuagens. Os resíduos que resultam da tanatopraxia — conjunto de técnicas para conservar corpos a que se recorre, por exemplo, nas agências funerárias — também estão incluídos nesta categoria. Dividem-se em quatro grupos: resíduos não perigosos e equiparados a resíduos sólidos urbanos (grupos I e II), resíduos hospitalares de risco biológico (grupo III) e resíduos hospitalares químicos e outros específicos (grupo IV). Consoante o grupo, são submetidos a tratamentos diferentes.
Os resíduos relacionados com a pandemia incluem-se, sobretudo, no grupo III, por terem de ser desinfetados face ao risco de contaminação. Para isso, recorre-se à utilização de micro-ondas semelhantes aos de uso comum mas de dimensões muito maiores, onde são colocados os resíduos a uma temperatura muito elevada, que pode oscilar entre os 95 e os 105 graus celsius. São depois triturados para garantir a destruição de todos os agentes patogénicos e encaminhados para aterros industriais. Outro tipo de tratamento é a autoclavagem, em que é utilizado vapor de água para descontaminar os resíduos, que também são, posteriormente, triturados e encaminhados para aterros industriais equiparados a urbanos.
Para perceber o acréscimo de resíduos hospitalares causado pela pandemia, também é importante olhar para o grupo IV, que inclui materiais cortantes e perfurantes como as agulhas e seringas utilizadas na vacinação. A legislação em vigor obriga a que estes resíduos sejam incinerados, recorrendo-se, para isso, a câmaras de combustão instaladas nas unidades de tratamento.
“O aumento da produção de resíduos hospitalares nos anos da pandemia deveu-se, essencialmente, à utilização em massa de equipamentos de proteção e ao uso de vacinas no combate ao vírus”
Mário Esteves, engenheiro no SUCH (Serviço de Utilização Comum dos Hospitais)
Segundo Mário Esteves, que trabalha como engenheiro do ambiente no SUCH (Serviço de Utilização Comum dos Hospitais), o aumento da produção de resíduos hospitalares nos anos da pandemia deveu-se, essencialmente, “à utilização em massa” dos equipamentos de proteção, mas também ao uso de vacinas no combate ao vírus. Aliás, os resíduos hospitalares que mais contribuíram para o aumento da produção registado em 2021 (15 mil toneladas no total) pertencem, sobretudo, ao grupo IV, “dado o incremento em massa da vacinação”. Mário Esteves explica que, de acordo com as orientações da Direção-Geral da Saúde (DGS), também os frascos de vidro da vacina têm de ser incinerados, o que “tem um valor expressivo na quantidade final de resíduos”.
Recolha de resíduos: “Passámos de uma recolha por dia para três”
Tal acréscimo de resíduos hospitalares obrigou a mudanças na operação do SUCH, com o alargamento de horários de trabalho e a contratação de profissionais para reforçar as equipas que recolhem os resíduos nas várias unidades de saúde. Também foi aumentada a frequência de recolha e de envio destes resíduos para as estações de tratamento, que passaram a funcionar ininterruptamente. Mário Esteves explica: “Antes da pandemia, estávamos a viver um período calmo em que os programas de trabalho estavam a ser cumpridos na íntegra”. Depois, foi necessário “redobrar as recolhas nos hospitais e centros de saúde” devido à “produção muito elevada de resíduos” e “triplicar os horários”, com a contração de funcionários para assegurar mais turnos. “Num dos hospitais da região de Lisboa mais procurados durante a pandemia, passámos de uma recolha por dia, de segunda a sábado, para duas a três diárias de segunda a domingo, dada a necessidade de fornecer contentores vazios e recolher contentores cheios para encaminhar para as unidades de tratamento”, exemplifica o engenheiro.
Na unidade de tratamento de resíduos do SHUC no Ecoparque do Relvão, na Chamusca (distrito de Santarém) os horários de trabalho também foram alargados. “Os funcionários trabalhavam, em média, 12 horas por dia e passaram a trabalhar 24 horas sobre 24 horas durante a pandemia.” Também foram contratados mais funcionários, entre “motoristas, operadores de resíduos e de lavagem de contentores, e técnicos de incineração”.
A “necessidade extrema” de melhorar a gestão de resíduos
Recentemente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) alertou para o aumento de dezenas de milhares de toneladas de resíduos médicos produzidos e distribuídos durante a pandemia, que colocaram uma grande tensão nos sistemas de gestão de resíduos e que ameaçam o ambiente e a saúde humana. Foram analisadas cerca de 87 mil toneladas de equipamento de proteção individual adquiridas entre março de 2020 e novembro de 2021, enviadas pela organização internacional para apoiar as necessidades urgentes de determinados países.
A conclusão é que a maior parte desse equipamento não terá sido submetido a processos de tratamento de resíduos. Além dos equipamentos de proteção individual, foram distribuídos mais de 140 milhões de kits de teste à doença, com potencial para gerar 2.600 toneladas de resíduos não infeciosos (sobretudo plástico) e 731.000 litros de resíduos químicos. Também foram administradas globalmente mais de oito mil milhões de doses de vacinas, que produziram 144.000 toneladas de resíduos adicionais sob a forma de seringas, agulhas e caixas de segurança para as colocar. Face ao aumento dos resíduos que resultaram da pandemia, há uma “necessidade extrema” de melhorar a gestão de resíduos, sublinhou a OMS.
Ao Expresso, a APA garante que “foi e continua a ser possível com as instalações existentes dar uma resposta adequada ao aumento dos resíduos hospitalares, mantendo os mesmos níveis de exigência ao nível do tratamento”. “Não existe uma preocupação acrescida com o tratamento destes resíduos”, explica a agência. Durante a pandemia, “foram efetuadas alterações” para dar resposta às necessidades, acrescenta, dando como exemplo a entrega de autorizações excecionais para a entrada em funcionamento de novos de equipamentos de tratamento de resíduos e a isenção de licenciamento para as operações de aumento da capacidade de armazenamento das empresas que tratam da gestão dos resíduos hospitalares.
Pandemia travou boas práticas de gestão dos resíduos
A APA avisa, no entanto, que depois da pandemia será necessário “efetuar um esforço com as unidades de prestação de cuidados de saúde e operadores de tratamento para a redução da produção destes resíduos”. Era essa a estratégia que estava a ser seguida mas com a pandemia houve um recuo. “Face à situação atual, aguarda-se a regularização da situação pandémica para se reforçar esta preocupação”, diz a agência, para quem é importante “substituir materiais descartáveis por reutilizáveis e recuperar as boas práticas de prevenção de resíduos já implementadas [nas unidades que prestam cuidados] antes da pandemia”. Outra prioridade será “separar corretamente as frações recicláveis e os resíduos perigosos”.
“Durante a pandemia, não houve possibilidade de fazer uma triagem seletiva dos resíduos, dado o risco de contágio. Nada foi triado, nada foi reciclado. Os indicadores de triagem diminuíram drasticamente”
Mário Esteves, engenheiro no SUCH (Serviço de Utilização Comum dos Hospitais)
Recentemente, Francisco Ferreira, presidente da associação ambientalista Zero, também chamou a atenção para a necessidade de reduzir os resíduos hospitalares, através da reutilização de alguns materiais utilizados na prestação de cuidados de saúde. “É um esforço não apenas da pandemia, mas sistemático, desde há muitos anos, para diminuir a produção de resíduos hospitalares”, disse à Lusa.
Em março de 2020, a DGS emitiu uma orientação para a recolha e tratamento de resíduos hospitalares, definindo que todos os resíduos produzidos por doentes com covid-19 e resultantes da prestação de cuidados a doentes infetados com o vírus são considerados contaminados, “com risco infeccioso associado”. Isso fez com que os resíduos que, habitualmente, eram encaminhados para reciclagem, como as embalagens plásticas, deixassem de o ser. “Com a covid-19, isso deixou de existir. Não havia possibilidade de fazer uma triagem selectiva dos resíduos, dado o risco de contágio. Nada foi triado, nada foi reciclado”, explica Mário Esteves, adiantando que “os indicadores de triagem diminuíram drasticamente”. Com o fim da pandemia, espera-se um retorno às boas práticas. “Voltámos ao terreno para dar ações de formação e de sensibilização aos profissionais de saúde. A preocupação com a covid-19 vai manter-se, mas esperamos que se torne mais branda com o tempo para podermos reduzir a produção de resíduos.”
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