Vieira Lopes: “Metas do governo são realistas mas é preciso investimento”

O presidente da CCP lamenta que o crescimento do país continue anémico. E defende uma baixa fiscal que incentive a desalavancagem das empresas.

Começamos inevitavelmente pela crise dos combustíveis que esta semana pôs em risco toda a economia. Como é que se criou este caos tão rapidamente?

Há um enquadramento geral: houve uma opção estratégica e política em Portugal de assentar todo o sistema económico no automóvel e no transporte rodoviário. Mas mesmo sem essa opção, hoje esse sistema pesa muitíssimo em qualquer economia. Portanto uma falha de abastecimento tem consequências muito graves. Por outro lado, como temos visto em toda a Europa, existem tendências centrífugas em relação às estruturas tradicionais: sejam políticas empresariais ou sindicais. E nesse contexto surgem diversas organizações um pouco isoladas das tradicionais, são normalmente setores especializados, com algum poder económico, pequenos e coesos e por isso com capacidade reivindicativa para tomarem posições radicais durante tempos prolongados. Esse é um fenómeno a que temos de nos habituar porque vai continuar.

É possível impedir que se repita?

Com a contratação coletiva e os contratos verticais dos setores — como há no automóvel, nos transportes, etc. –, que tentam enquadrar todo o sistema e todas as áreas profissionais. Por isso o que pode suceder, como aconteceu com esta greve e com a dos enfermeiros, é que alguns setores especializados considerem que têm de ter condições particulares e queiram fugir à estrutura vertical. Nós consideramos que a estrutura vertical tem de continuar a existir e que tem de haver capacidade de construir organizações fortes.

Mas essa especialização em simultâneo com a estrutura vertical é desejável?

Não. Portugal tem um problema estrutural: a Bélgica tem 100 organizações empresariais, nós temos 750! Há tendência para fragmentar em excesso e isso pode ter consequências deste tipo e criar dificuldades de sustentabilidade em muitas associações.

Esta greve teve impactos no comércio e nos serviços?

Teve. Quando há estas situações, os media noticiam e por vezes empolam… apesar de os serviços mínimos serem adequados a manter algum fluxo de fornecimento houve uma corrida às bombas. E houve bastantes atrasos na distribuição, não atingiu níveis dramáticos mas houve. Tivemos bastantes queixas quer no setor alimentar quer na própria indústria, nomeadamente por problemas de abastecimento de peças, porque hoje se trabalha com pouco stock, por isso os fluxos de abastecimento ganham importância que não tinham nos sistemas antigos. Mas nada de dramático, tendo em conta o relativamente pouco tempo que foi necessário para chegar a uma solução transitória.

Nesta semana foram conhecidos os números do Programa de Estabilidade para os próximos cinco anos. O crescimento foi revisto em baixa (de 2,2% para 1,9%), mas a meta do défice fica nos 0,2% e prevê-se excedentes a partir de 2020. Essas metas convencem-no?

As metas em termos do que tenha que ver com défice são hoje realistas tendo em conta as políticas que têm sido seguidas. O problema é que as taxas de crescimento, em termos sustentáveis, são muito anémicas. Apesar de ter havido alguma flexibilidade ultimamente, o tratado orçamental e suas implicações nos objetivos impostos pela União Europeia nesses rácios acabam por criar uma situação que limita o investimento. E nós tivemos uma quebra brutal, nomeadamente no investimento público. Portugal precisa de atrair capital estrangeiro e de investimento público, que tem o efeito multiplicador. Com este tipo de restrições e objetivos orçamentais não nos parece que seja possível darmos um salto sustentado nos próximos anos. Não se prevê uma recessão, a não ser que haja fenómenos internacionais, mas…

Mas o contexto internacional não é animador…

O governo alemão cortou esta semana as previsões de crescimento pela segunda vez neste ano. Do Reino Unido vem a sombra do brexit. Espanha e Itália também não estão bem… Não é animador. Os objetivos em relação ao défice e um conjunto de rácios parecem realistas, mas não capazes de libertar investimento ao nível necessário ou de dinamizar o que é preciso para Portugal ter crescimento em convergência real com a Europa. Não podemos ficar satisfeitos com diferenciais de 0,1%.

Mas não lhe parece que haja demasiado otimismo, são valores exequíveis.

É exequível, mas com este handicap negativo: não acreditamos que seja possível manter o investimento ao nível que o governo se propõe. Aliás, já tivemos experiências: dos 1500 milhões que havia para investir nos caminhos-de-ferro, investiu-se uns 10%. Porque este tipo de restrições impostas pelas regras europeias levam a que, se for difícil atingir as metas, se corte onde é mais fácil, que é no investimento. E nesse ponto o modelo não se altera. Só se prevê uma recessão por impacto internacional, mas continuamos num modelo de crescimento anémico com a agravante de que Portugal tem feito um bom esforço de exportação mas não tem havido alteração significativa na componente importada dos produtos exportados, logo o valor acrescentado nacional não tem crescido ao nível desejado e a produtividade também não. Usando uma expressão do primeiro-ministro, há uns anos, “é poucochinho”.

A dívida continua bastante elevada e, se tudo correr bem, o Programa de Estabilidade prevê que baixe de 118% para 100% em cinco anos. Parece-lhe possível este nível de redução?

O nível de redução da dívida, se mantivermos o crescimento, parece realista, mas o problema estrutural é outro: ou há uma alteração da filosofia em termos europeus que permita transformá-la em dívida a muito longo prazo ou a pressão da dívida será sempre uma das limitações maiores da economia portuguesa. Resta saber se o BCE permanecerá com estas políticas. Estamos bastante preocupados nesse sentido, até porque virá a substituição de Mario Draghi e pode ser por alguém sem essa visão de abertura em momentos cruciais da crise; na Alemanha já se assumiu que houve exageros nos programas de resgate, mas as declarações de potenciais candidatos ao BCE e à sucessão de Merkel parecem bastante mais rígidas.

António Costa recusou, aqui em entrevista à TSF e DV, que baixar impostos seja prioritário. Diz que é preciso continuar a baixar a dívida pública e repor a qualidade dos serviços públicos. Concorda com o primeiro-ministro?

Colocada em alternativa, essa situação não é correta. Baixar a pressão fiscal sobre as empresas neste momento era importante e não se pode ver apenas em termos de rácios — porque em termos europeus a carga fiscal portuguesa não é das mais altas. O problema é que os rendimentos também são diferentes nos países nórdicos. Portugal tem um problema estrutural que vai demorar muito a ultrapassar. Nós temos 750 mil empresas, 99% são pequenas, médias e micro, que têm capacidade e dimensão limitadas, precisam de criar dinâmicas de trabalho em rede — e há exemplos positivos disso, como o calçado — para criar dimensão que lhes permita intervir quer no mercado interno quer no exportador. Mas a carga fiscal e dentro desta a burocracia fiscal, que cresceu brutalmente nos últimos anos, não ajuda. Há uma questão que é algo invisível: tendo em conta a dimensão, a maioria das nossas empresas tem o seu sistema contabilístico e informático em outsourcing e sempre que há alterações, há custos. Acho que era importante aumentar os incentivos às empresas para se capitalizarem. A Missão Capitalizar, do governo, foi positiva, mas está longe dos objetivos.

Há também os custos da energia, com uma carga fiscal de 55%… Era importante reduzir-se?

Sim, isso para nós é claro. Os custos de energia são excessivos, somos dos que têm custos de energia mais altos da Europa. Mas o incentivo ao investimento é que devia ser maior, ou seja, a baixa da carga fiscal não deve ser indiferenciada mas orientada para questões concretas de incentivos ao investimento e à desalavancagem. Têm sido feitas coisas, reconhecemo-lo, mas estão longe de dinamizar o investimento próprio. Temos dito aos governos: enquanto for mais barato, em termos fiscais, ir buscar dinheiro à banca do que colocar capitais próprios nas empresas, o problema não se resolve. E mesmo assim vai demorar anos.

Falemos sobre o setor do comércio e dos serviços. Quais são os grandes desafios neste momento?

O grande desafio para a economia portuguesa em geral é o posicionamento geoestratégico de Portugal. Nós não participamos do que consideramos ser uma ilusão, a de que a indústria transformadora possa ser motor da economia. É importante, sim, mas há outra grande oportunidade que temos. Nós chegámos tarde a todas as revoluções económicas, mas desta vez, na Economia 4.0, com a digitalização, a Inteligência Artificial, a robótica e todo este tipo de novos paradigmas permitem que um país, desde que consiga investir claramente na qualificação das pessoas, podemos apanhar o comboio. E nisso os serviços são estruturantes, porque a cadeia de valor é hoje totalmente diferente. Hoje, um produto é concebido em Silicon Valley, as peças são feitas no Vietname, é montado na China, o serviço de pós-venda pode estar em Portugal ou na Costa Rica… os serviços têm um papel muito importante. E já temos cá essa experiência: um estudo que fizemos com a Augusto Mateus & Associados demonstra que 50% das exportações portuguesas são serviços, se virmos essa parte incorporada nos produtos de outras áreas, seja a agricultura seja a indústria. Aliás, o que a construção civil vende para o estrangeiro são serviços de gestão de obra, o próprio êxito do têxtil e calçado tem que ver com isso. Mas para responder a esse desafio é preciso modelarmos de modo diferente o modo como nos integramos nesses processos todos. É uma aberração que no QREN o investimento dos quadros europeus – que é imprescindível para Portugal tendo em conta a falta de investimento – tenha sido de 4% no comércio, de 11% nos serviços e de 15% no turismo.

É insuficiente.

Claramente, é desproporcionado. Nós sabemos que terá de haver sempre investimento em infraestruturas, por exemplo. E, lamentavelmente, isso está a repetir-se no Portugal 2020. Este governo, corretamente, colocou à discussão junto da economia e das forças ativas o Portugal 2030, que é o próximo quadro, e nós levámos essa perspetiva à mesa. Não é nenhuma perseguição, mas o modelo que existe da elegibilidade do investimento está estruturado desta maneira e é um desafio. O comércio é uma componente de serviços em toda essa cadeia, porque hoje, mais do que produzir algo, é preciso levar o produto ao consumidor e ele saber o que está a comprar.

Na quarta-feira houve concertação social e o governo propôs atribuir mais vistos para trabalhadores que venham de fora da União Europeia. Quer aumentar o contingente para 8200 imigrantes neste ano, porque há vários setores que continuam com falta de mão-de-obra. A Confederação do Comércio já disse que vê esta possibilidade com bons olhos. É importante esta medida?

Portugal tem um problema demográfico, e por muitas medidas que se tome agora para facilitar a vida das pessoas e famílias vai levar dezenas de anos a corrigir. Nós sempre defendemos que a correção demográfica em Portugal, que envolve também a sustentabilidade da Segurança Social, vai passar pela imigração — é imprescindível. Temos de fazer, como os EUA ou o Canadá, planos de incentivos onde haja mais necessidade de pessoas. Não haja ilusões: precisamos de medidas claras nesse sentido. Por outro lado, precisamos de desenvolver a nossa economia e produtividade de forma a haver condições para subir remunerações, se não teremos os nossos trabalhadores qualificados a ir embora e nós a tentar criar imigração.

Está em discussão no Parlamento a lei do trabalho, com alterações em sede de especialidade — prevê-se o banco de horas para empresas mais pequenas, o banco de horas grupal, o limite à renovação de contratos a prazo, o alargamento do período experimental de jovens e o recurso a contratos de muito curta duração, entre outras medidas flexibilizadoras. O caminho que está a ser seguido parece-lhe razoável?

O acordo que fizemos na concertação social no ano passado é equilibrado e nem é maximalista. Aliás, nós, na Confederação do Comércio e Serviços, defendemos que uma das razões de haver, independentemente de situações pontuais, estabilidade em Portugal tem que ver com bom senso das entidades intervenientes. No tempo da troika, e apesar de o contexto político ser favorável a isso, as confederações empresariais não foram maximalistas, o acordo de 2013 não o foi. E sejamos claros: se as confederações tivessem querido radicalizar, havia ambiente político e cobertura internacional para tal. Mas fizemos um acordo equilibrado com alguma flexibilização. Que é necessária, mesmo porque os desafios da robótica, da Economia 4.0 e da digitalização levam a que o modo de organizar trabalho e empresas seja diferente. Pensar que essa organização pode ser como era na primeira metade do século XX não faz sentido. Por isso as alterações que propusemos são moderadas e adequadas.

Mas era preciso ir mais longe?

Neste momento, estas escolhas são equilibradas e suficientes para as necessidades. Quanto ao futuro, hoje evolui tudo a tal ritmo que é imprevisível. Por exemplo, o comércio eletrónico deu origem a necessidades novas na logística. Mas as lojas tradicionais não vão desaparecer, a Amazon está a tentar abrir lojas. Teremos um mix de alternativas generalizado, virado para o consumidor que envolve situações diferentes, novos horários, etc.

Em relação à sustentabilidade da Segurança Social, um estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos alertou para a possibilidade de défices crónicos em menos de dez anos e sugere que se aumente a idade da reforma até aos 70 anos. A solução passa por um aumento mais acelerado da idade da reforma, como sugere o estudo?

A Segurança Social preocupa-nos, e por isso temos investido no estudo desses fatores. A Segurança Social em Portugal, durante muitos anos, foi gerida na lógica da D. Branca: como entrava mais dinheiro do que saía, toda a gente estava feliz. A economia foi crescendo, os salários também, estava tudo bem. A partir de certa altura surgiram as preocupações com a sustentabilidade que justificaram o acordo de 2007, com alterações positivas. Mas há uma questão que é clara: as empresas descontam 34,75% para a Segurança Social e nem metade disso vai para as pensões (vai para subsídios de desemprego, saúde, etc.), portanto mesmo descontando 40 anos a parte que chega às pensões é uma fração e não compensa o aumento da esperança média de vida.

Mas a solução é subir para 70 anos?

Esse estudo infere do mesmo erro das pessoas que querem manter intocável o atual sistema: a lógica de manutenção do modelo de imputação meramente à variável trabalhadores/salários para a sustentabilidade vai sempre conduzir ao mesmo, que é a partir de certa altura aumentar ou a idade de reforma ou a taxa de Segurança Social. Portanto, nós não temos certezas, introduzimos outras formas de financiamento. Na Alemanha por exemplo discute-se taxar os robôs porque, com as novas tecnologias, as empresas que têm mais valor acrescentado têm hoje muito menos pessoas. Na prática, quem sustenta a Segurança Social são setores e empresas com mais mão-de-obra, daí introduzirmos essa questão do valor acrescentado e estamos de acordo que se faça essa avaliação. Achamos que deve ser encontrado um sistema misto que permita baixar a TSU às empresas para baixar os custos globais e estamos dispostos a participar nessa discussão. O nosso grupo de trabalho está a estudar isso e ainda este ano produzirá mais relatórios.

Estamos a chegar ao fim desta legislatura. Que avaliação faz do governo de António Costa? E acha possível que se repita uma solução semelhante à destes quatro anos?

Nós nascemos no PREC, negociamos com qualquer governo. Quanto à avaliação deste governo, ele teve duas valências: por um lado, criou um ambiente mais otimista e com menos pressão em relação ao funcionamento da economia; por outro, acabou por repor alguns rendimentos que permitiram uma certa descompressão em termos de tecido empresarial. Em Portugal há 400 mil empresas, 25 mil exportam e muitas dessas, para manterem a porta aberta também vendem para o mercado interno, portanto, isso foi positivo.

Mas?

Mas este governo não alterou significativamente o modelo de funcionamento económico nem criou condições suficientes para o tal salto quantitativo e qualitativo da economia. Portanto, globalmente teve aspetos positivos, outros claramente insuficientes, e em particular no modelo de desenvolvimento económico atuou muito pouco. Herdou essa questão negativa que foi a falta de investimento em qualificação e formação, e não foi capaz de fazer as adaptações suficientes. Portugal tem duas valências estruturais e é por aí que tem de se colocar no mundo: aproveitar o território tendo em conta que o conceito de periferia em termos mundiais hoje não é o mesmo – portanto enquanto plataforma de mobilidade e logística entre vários mundos – e qualificar as pessoas. E continua a investir-se muito pouco numa área fundamental que é a qualificação da gestão, que é fundamental para fazer crescer a produtividade. Temos um problema de qualificação da gestão e os fundos europeus e as políticas que seguimos não têm sido estruturadas para responder a isso.

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