"O governo não tinha intenção de chegar a acordo no salário mínimo"

 

 

Almoço com João Vieira Lopes, presidente da Confederação do Comércio e dos Serviços de Portugal

A comida é boa e caseira e a localização conveniente – fica perto de casa e a meia distância entre a Expo, onde tem o escritório que lhe ocupa as manhãs, e o Restelo, onde passa as tardes na sede da Confederação do Comércio e Serviços de Portugal (CCP) -, por isso não custou muito a João Vieira Lopes escolher O Jacinto, em Telheiras, para o nosso encontro. À beira de se atirar para um terceiro mandato à frente da CCP, que lidera há oito anos (depois de nove como vice-presidente), não acusa cansaço – ainda que admita que quer começar a desligar-se gradualmente das estruturas. E nem dá mostras de desânimo pelos sucessivos murros no estômago que a concertação tem levado – primeiro no período da crise e da troika, depois com um governo dependente do apoio parlamentar do PCP e do BE. Para o que contribui uma independência de que nunca abdicou, recusando tanto os convites que recebeu para a estrutura de liderança do Sporting, o seu clube de coração, como (e sobretudo) para a política, onde tem ainda grandes amigos.

Conciliador até onde pode ser – “e quando dá para o duro, se é para partir, é para partir” -, sem papas na língua frisa que nunca quis entrar para a política. “Fiz uns ameaços no tempo do PREC, mas depois descalcei as sapatilhas.” Porquê? “Porque não conseguiria ter disciplina, sou muito cioso da minha independência e não prescindo de dizer o que penso. O associativismo permite-me falar com os governantes sem pensar se nas próximas eleições vou a deputado ou não.” Em resumo, chegar aos 70 anos sem ligações partidárias permitiu-lhe “ter compromissos e posições muito duras com qualquer governo ou Presidente”. Teve-as, por exemplo, com o ex-Chefe do Estado. “Houve ali um desentendimento, porque Cavaco Silva achava que as confederações deviam ser críticas em relação à formação deste governo. Eu disse-lhe que a maioria destas associações nasceram ou passaram pelo PREC e habituaram-se desde cedo a negociar com todos, por isso, independentemente da opinião de cada um, a nossa cultura é de independência total de guerras partidárias.”

Mas também já se deu “mal e bem com todos os governos” – no de Passos Coelho, “cheguei a receber projetos de lei para aprovar em 48 horas, em agosto”. E bem recentemente, com o de António Costa, que “impôs” os 580 euros de salário mínimo a partir deste ano. “O governo não tinha realmente intenção de chegar a acordo. O enquadramento que nos enviou era de tal maneira vazio que, conhecendo a experiência política de António Costa e Vieira da Silva, penso que não houve nenhum esforço.” Justifica-o com a necessidade de “fazer passar certos temas pelo crivo dos aliados” e lamenta que, ainda que tenham sido feitas algumas coisas, o Orçamento do Estado não se tenha focado nas empresas, servindo antes para tratar as “questões necessárias para o governo passar na sua base política, para completar as problemáticas dos rendimentos, e outras que tais”. “O governo tem a legitimidade toda para fazer os acordos políticos que quiser, mas nós não somos notários…” Sublinha que, “com a devida antecedência”, a CCP apresentou a Mário Centeno um conjunto de questões que queriam que fossem abordadas no Orçamento – “normalmente quando chegamos à concertação social, os governos usam o pretexto de já ter o OE aprovado, por isso neste ano surpreendemo-los antes”, conta. “Se o governo tivesse vontade política de fazer acordo, algumas coisas nem custavam dinheiro nenhum – como o problema da responsabilidade subsidiária do gerente (que hoje fica responsável pelas questões que surjam mesmo que tenham acontecido antes de entrarem; o fisco primeiro penhora e só depois pergunta). Eram questões na lógica da garantia do contribuinte, sem custos, mas o governo passou ao lado de tudo isso.”

A mesa que se queria tranquila, quase refundida num cotovelo da sala d”O Jacinto, não escapa afinal ao ruído da lotação esgotada, mas conforme a nossa conversa se desenrola quase deixa de se ouvir. Vieira Lopes explica – como tenta fazer sempre que é esse o assunto – que não é contra a subida do salário mínimo. “É sempre incómodo fazer discussão política em torno de salários deste nível, que é baixo, como o salário médio também é baixo… É fácil fazer demagogia com este tema, por isso a argumentação propagandística dos sindicatos acaba por ter algum efeito. Nós somos provavelmente a única confederação que sempre defendeu o aumento, mas há uma vertente económica que tem de ser considerada – tem de ponderar inflação, produtividade, mas também a componente social.” Exemplifica: se o salário mínimo subir sem racionalidade económica, há empresas que tinham reservado um xis para aumentos de salários que veem essa margem quase toda desaparecer para cumprir esse desígnio.

Enquanto cede a uma pequena porção da salada de polvo que deixaram a fazer companhia à fresquíssima broa – João não se nega nenhuma comida nem lhe sabe bem uma refeição sem vinho, mas tudo em doses muito moderadas -, vai-me dizendo que também vê pontos positivos neste governo. O facto de ter valorizado a aposta no consumo interno, por exemplo, depois dos anos da troika, em que “a excessiva quebra do mercado interno criou uma situação de desemprego incontrolável”. “Das 400 mil empresas que temos, só 25 mil exportam – por isso pensar que isto pode ser a Singapura e viver só de exportações é ilusório -, e parte delas precisa também de vender aqui para manter a porta aberta, por isso foi positivo. Claro que há áreas em que esta aliança política dificulta algumas evoluções – o nosso papel é ver em que pontos podemos lutar.”

Quanto ao aparentemente crescente descontentamento à esquerda, justifica-o com “necessidades de demarcação política dos diversos componentes”, mas acredita que esta solução governativa atingiu um ponto em que serão cada vez mais frequentes as divergências. Mas apesar de situações que nos fogem ao controlo – Trump, brexit… -, revela otimismo. “Neste momento há uma conjuntura internacional favorável, a infeliz instabilidade no Mediterrâneo deve manter-se, os juros estão baixos e os nossos empresários têm aquele espírito do desenrasca que funciona – vão para sítios esquisitos tentar vender coisas e alguns conseguem. A situação é globalmente positiva.”

E a dívida? A questão não é linear e Vieira Lopes trata-a com o devido cuidado. “É preocupante, porque expõe muito o país às oscilações das taxas de juro, mas mais importante do que pagar tudo é criar uma tendência de redução, quer em valor percentual quer nominal – aí é que há uma certa ambiguidade porque se baixou pouco em termos nominais, mas enquanto a economia crescer disfarça.”

Servidos o polvo à lagareiro – de que, cumprindo o que antes explicara e que parece desesperar os chefs, haverá de comer menos de metade – e as deliciosas costeletas de borrego com arroz de cogumelos, os indispensáveis copos de Herdade da Gâmbia a acompanhar a água, conta-me que nem sempre é fácil conciliar o associativismo com as empresas que gere – teve em tempos uma consultora, mas nas últimas décadas dedicou-se à administração de duas centrais de compras (a Euromadiport e a Unimark) que reúnem 32 pequenas e médias empresas da área da distribuição – “o que lhes permite ter massa crítica para comprarem aos fornecedores a preços o mais próximo possível da Sonae e da Jerónimo Martins”, explica. É que se a agenda das empresas não é dramática de conciliar, a do governo é imprevisível. Mas João Vieira Lopes fez questão de se manter sempre com um pé em cada margem. “Por um lado, porque há uma tradição de não ter direções profissionalizadas na CCP – o que dá uma certa liberdade; como dizia Mota Pinto, tenho sempre a chave do carro no bolso -, por outro, porque assim mantenho a ligação à economia real, que por vezes se perde quando se está muito tempo em funções associativas.”

E afinal como é que chegou a esta vida? “Completamente por acaso.” Conta que quando arrancou com uma dessas centrais de compras, um grupo de empresários lhe pediu que os representasse na direção da CCP, ainda liderada pelo engenheiro Vasco da Gama, e ele, que nunca tinha pensado nisso e estava longe de adorar a exposição pública, ainda que valorizasse estar no núcleo de decisão, simplesmente aceitou. “Nessas coisas também não me enjeito”, conclui, a denunciar as origens alentejanas. Nas eleições seguintes, foi incluído na lista da “oposição”, que venceu as eleições, e o resto é história – “havia uma com uma visão de concertação mais próxima do comércio tradicional e outra que valorizava toda a representatividade na economia, porque a CCP é muito heterogénea; além do comércio tem os setores dos transportes, o automóvel, o trabalho temporário, os químicos, as limpezas…”. Esse é um dos aspetos que mais o atraem na confederação, a variedade garante “uma noção real da economia do país, dá muita sensibilidade quanto ao tecido económico”. E o seu trabalho é construir uma linha que cruze “os interesses desta gente toda” (104 associações, 150 mil empresas).

João Vieira Lopes é ateu e nem sequer acredita em determinismos, só concede que historicamente temos alguma capacidade para “encontrar aquilo de que precisamos”. Os exemplos que dá vão deste governo – “independentemente de aspetos menos interessantes desta coligação, ela teve um papel de descompressão importante; não se pode é pensar fazer sempre o mesmo…” – até à Igreja: “João Paulo II, o Papa polaco, foi a chave da desagregação da União Soviética; agora veio Francisco quando a Igreja se estava a isolar da comunidade…” Passando até por Marcelo Rebelo de Sousa, que teve a capacidade de “quebrar a distância entre a função e as pessoas e, ainda que talvez se exponha demasiado, foi a descompressão de que precisávamos depois da troika, do governo de Passos e de um Presidente hermético que, depois de um primeiro mandato razoável, acabou por não conseguir gerir os equilíbrios”.

Também na vida dele, digo eu, há um traço vincado da intervenção do destino. A começar pelo casamento com a atual responsável pelo programa EU Kids Online Portugal, Cristina Ponte, de quem fala com óbvio carinho e admiração e com quem tem um filho, investigador de História (especializado em Guerra Fria). “Como muitos da minha geração, eu não acreditava no casamento. Estou casado há 40 anos.” Ri-se.

De resto, levou a vida a cruzar-se com as mesmas pessoas que o acompanharam no Técnico – e que vão de António Guterres a Ferro Rodrigues, Mariano Gago, Alberto Costa, Nuno Ribeiro da Silva, José Tribolet, entre muitos outros. A muitos deles, a quem tinha perdido o rasto devido às viagens que fazia, reencontrou-os no governo, quando começou a sentar-se do outro lado da mesa da concertação social.

“A minha geração no Técnico acabou por ter um papel importante entre os que seguiram a política, e curiosamente foi aí que começou a minha propensão associativa, como vice do Mariano Gago na Associação de Estudantes do Técnico.” Juntara-os a solidariedade para com as vítimas das cheias de 1967: Gago, o melhor aluno da instituição, como presidente, “e eu como vice, porque já estava no Cine Clube Universitário e já sabia como funcionava uma associação”. Recorda que foi precisamente pela associação que pela primeira vez se viu dentro de um avião, para tentar arranjar cobertura para as dívidas de uma espécie de agência de viagens do Técnico (mais tarde transformada na Agência Tagus). “Tínhamos de ter avales de crédito para nos deixarem voltar a voar para Paris e quem nos safou foi o Olof Palme, na altura ministro dos Negócios Estrangeiros mas que fora presidente da associação de estudantes suecos e foi sensível ao caso. A Associação de Estudantes do Técnico era uma coisa em grande: movimentava na altura 20 contos e tinha 85 empregados, geria a cantina, o turismo, etc.”

Entusiasma-se a falar desses anos. “Foi uma geração interessante. Eu não tinha muito jeito para Engenharia (Eletrotécnica) – fui para ali porque o meu pai também era engenheiro e depois até quis mudar para Economia, mas perderia o adiamento do serviço militar, então fiquei.”

Terminado o almoço e com os primeiros cafés a caminho – eu adoro, João é viciado, apesar de já ter reduzido dos 15 para os cinco diários -, diz que acabou o curso mas nunca praticou. “Eu tinha horror àquilo, pouca gente tem tanto horror às máquinas como eu! Lembro-me que combinava com os colegas: vocês mexem nas máquinas e eu faço os relatórios”, ri-se com a recordação. Conta que, depois de uma pós-graduação que o levou a viver dois anos em Paris (terminados no ano do 25 de Abril), arranjou trabalho por anúncio, numa multinacional de estudos de mercado. E nessa incursão pelo Marketing e Gestão – que havia de fazer a sua carreira -, acabou por ser o Técnico a dar-lhe vantagem, com a Estatística e o restante background a contribuírem para ser o melhor entre pessoas de nove países que a empresa levou a fazer um curso na Suíça.

De resto, a sua vida foi sendo essa das empresas, com muito tempo fora, até se cansar de passar a vida dentro de um avião: “Cheguei a fazer 60 deslocações por ano! Foi então que me meti nesta guerra das centrais de compras.” Empresas suas nunca foram coisa que o entusiasmasse: “Houve uma altura em que pensei nisso, mas as coisas não fluíram e o momento passou.”

Para a segunda ronda de cafés está reservada uma visita-relâmpago à infância de Vieira Lopes, alentejano de mãe e de infância que veio “nascer a Lisboa porque a família tinha posses” mas cresceu em Almodôvar e um pouco por todo o Alentejo – “fiz umas quatro vezes a primeira classe, desde os 4 anos, sempre que chegava a uma escola nova punham-me a fazer aquilo!” -, já que o pai trabalhava no Instituto Geográfico e chefiava a equipa que fazia os levantamentos topográficos do Sul. “Ele foi colocado ali e encontrou a minha mãe numa festa que houve no dia em que acabou a II Guerra Mundial.” No regresso a Lisboa, sem vagas no ensino oficial, foi colocado no Colégio Moderno – “foi o pai de Mário Soares que me fez os exames”, conta -, antes de completar o liceu no Camões.

O que o diverte ainda hoje? “O jazz, tenho essa pancada – afinal, sou da geração do primeiro Festival de Jazz de Cascais, quando ainda era considerado subversivo… sempre que vou para fora não perco um ou dois concertos. Essa é outra paixão que tenho: viajar. Faço sempre uma viagem longa por ano, vou o mais longe possível.” Na lista de destinos que vai reduzindo a bom ritmo, falta-lhe o sonho da Austrália. Que decerto cumprirá bem antes de se ver reformado.

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