Carlos Martins: “Não acreditamos que a e-GAR seja motivo para a falência das empresas”

A entrada do novo ano trouxe grandes preocupações para os gestores de resíduos, mais vulgarmente conhecidos como sucateiros. A implementação das guias eletrónicas de acompanhamento de resíduos (e-GAR), está a ser vista como uma limitação ao normal trabalho do setor que pode levar a empresas à falência. Carlos Martins, secretário de Estado do Ambiente, tenta esclarecer a polémica.

A nova portaria remonta a uma lei de 1997 que nunca foi implementada. Porquê?

As razões para não ter sido implementada, naturalmente, não as posso adiantar porque só estou há dois anos nestas funções. Esta é uma reforma que reduz custos, porque as pessoas já não necessitam de comprar as guias da Casa Nacional da Moeda, simplifica, aumenta e agiliza a rapidez com que se promovem as questões e aumenta o controlo por parte da administração. Dá–nos muito orgulho termos conseguido, num prazo relativamente curto, implementar uma tecnologia que está ao nível do melhor que se faz na Europa. Eu diria mesmo que a Europa até se prepara para seguir o nosso exemplo.

Dados da Associação Portuguesa dos Operadores de Gestão de Resíduos e Recicladores (APOGER) indicam que existem 709 empresas licenciadas para tratar fileiras urbanas.

Fileiras urbanas no sentido do conceito de resíduo urbano, naturalmente, não. Podem  desempenhar alguma tarefa complementar àquilo que são os serviços urbanos que são de exclusividade municipal. Outra coisa era haver algumas entidades que desenvolviam nichos de mercado e atividades, umas de acordo com as suas licenças, outras em que tinham uma leitura muito extensiva daquilo que eram as suas possibilidades. Nós não ignoramos que há operadores que trabalham com materiais que deviam ser conduzidos para as triagens de resíduos urbanos que são sonegados na via pública dos próprios ecopontos e nós não queremos essa atividade. Os cidadãos cada vez que colocam ali os seus materiais são para os encaminhar para reciclagem através dos sistemas municipais. É isso que permite que depois a nossa tarifa em casa seja mais baixa porque são receitas – quando há receitas – do próprio sistema municipal.

Então não existe licenciamento para tratamento de resíduos urbanos dos gestores de resíduos?

Pode haver códigos que se misturam. Ou seja, um código de papel pode ser um papel que vem de um escritório ou um papel que vem de uma grande superfície ou um papel que vem da nossa casa. O papel da casa dos cidadãos, em princípio, não devia ir parar a essas empresas. Devia ir para os sistemas municipais. Sem nenhuma dúvida.

Muitas empresas fizeram empréstimos para conseguir cumprir as normas impostas pelo ministério. O Estado acautelou, a nível económico, o facto desta nova portaria poder levar as empresas gestoras de resíduos urbanos à falência?

Há aí um equívoco qualquer porque os resíduos urbanos são uma competência municipal. Os municípios é que decidem se são eles próprios a fazer ou se delegam numa concessão ou num sistema supramunicipal e, desse ponto de vista, a legislação não sofreu nenhuma alteração. Que fique claro: de um conjunto de responsabilidades dos vários atores que eram colocados em um registo de papel dificilmente controlado pela administração face aos milhares de impressos que todos os anos eram emitidos, passámos, exatamente nas mesmas regras, para um formato digital que nos permite controlar cada um dos movimentos. Só uma leitura muito distorcida do que é esta portaria, pode entender que houve aqui alguma alteração. Quem fazia as coisas bem em papel fará as coisas bem no formato digital. Admito que alguns operadores pudessem andar a fazer coisas que não deviam. Isso é o que nós agora vamos descobrir. Mas nada tem a ver com pôr em risco o que quer que seja do ponto de vista das empresas. Se me fala de alguma franja de operadores que andavam habituados a não ser minimamente controlados e agora passaram a sê-lo, naturalmente, agora os mecanismos de controlo vão ser maiores.

Sobre os resíduos serem da responsabilidade das autarquias, as câmaras estão preparadas para receber estes resíduos?

As câmaras municipais estão preparadíssimas. As câmaras municipais sempre foram os atores chave na questão dos resíduos urbanos. Cobram tarifas, naturalmente, por esse serviço aos seus cidadãos e a seguir prestam-lhe serviço que é reconhecido internacionalmente como um serviço de elevada qualidade. Em Portugal, em cinco anos, acabámos com as antigas lixeiras, hoje todos os resíduos urbanos têm um destino adequado – aterros, valorização orgânica, triagem dos materiais recicláveis -, no continente temos a central de valorização energética de Lisboa e do grande Porto. Tudo instalações de elevada performance ambiental e, portanto, estamos muito satisfeito com as soluções que temos.

No que toca ao caso dos materiais com valor económico, as pessoas vão passar a ter de entregar de forma gratuita os materiais que possuem?

Se quiserem valorizá-lo, se alguém lhe comprar é porque não é resíduo. As pessoas têm de voltar à escola primária e entender o conceito de resíduo. Resíduo é algo de que eu me quero desfazer. Se eu quiser transacionar não é um resíduo. Que fique claro para as pessoas não fazerem confusão com as coisas: se me quiserem comprar o meu carro em segunda mão é uma transação económica, se eu me quiser livrar do meu carro velho é um resíduo de que eu me quero desfazer. E isso aplica-se a tudo. A minha bicicleta, a minha trotineta, o meu carro de bebé… Desse ponto de vista, os cidadãos estão tranquilos porque sempre que se quiserem desfazer de alguma coisa por dinheiro façam as transações comerciais que queiram fazer. O que eu não posso autorizar é que seja um sucateiro a ir lá buscar a casa da pessoa. A pessoa leva a bicicleta lá ao sucateiro. O sucateiro quando levar para a siderurgia é que tem de nos dizer a origem dos resíduos que lá estão.

Em 2012 foi aprovada uma lei que obriga ao mapeamento dos materiais. Os sucateiros fazem um registo do material e da pessoa que o entregou. E isso vai continuar?

E devem continuar a fazer. Isso não tem nada a ver com esta portaria. Esta portaria é uma portaria para o transporte. A outra questão é para garantir a detenção. Se as autoridades do ambiente forem a um sucateiro, ele tem de dizer de onde apareceram os materiais. Esse problema surgiu quando negociavam materiais de roubos de postes da EDP, de tampas de esgotos das cidades. Isso é outra coisa, nós não nos metemos com isso. Esta e-GAR é só para garantir o controlo sobre o transporte.

Na portaria, existem multas que estão estipuladas para indivíduos?

Não haverá multas aplicadas a pessoas individuais. Aquilo aplica-se a transportadores de resíduos. Cada um de nós, enquanto cidadão, não é um transportador de resíduos. Nós, quando vamos atravessar a rua para colocar no ecoponto ou quando vamos ao supermercado e levamos as nossas lâmpadas, a nossa telefonia velha, a nossa varinha mágica, e colocamos no eletrão, não está ninguém à espera para passar uma multa. Agora quem for buscar os equipamentos ao eletrão e os levar para outro lado tem de ter guia de transporte.

Uma outra preocupação que existe é a possibilidade do aumento do abandono do lixo. De que forma é que se pode evitar esta situação?

Da forma que sempre foi usada pelos cidadãos. Qualquer cidadão, hoje, quando se quer desfazer de uma coisa mais volumosa, mesmo que não se dê ao trabalho de ligar para a câmara o que faz é: leva a cadeira velha, o móvel velho, o espelho, a moldura, a consola, quando vai deitar o saco do lixo. E se for preguiçoso e não quiser encontrar o sítio certo, no mínimo, coloca junto do contentor. O que os serviços municipais fazem é, quando passam, agarram aquelas peças e põem dentro do camião. Agora o que nós não queremos é que haja empresas quase organizadas que param ao pé desses contentores, agarram nas coisas que têm valor e as levam. Nós queremos que esses usem estas guias de transporte. Não é o cidadão que anda lá a tirar o alumínio, as peças metálicas, o papel/cartão. Se já está naquele ponto, é do município.

No primeiro dia útil da entrada em vigor das e-GAR foram registados alguns problemas na plataforma.

A legislação saiu em maio, demos meio ano de preparação para as pessoas de uma forma voluntária aderirem calmamente e tranquilamente. Houve um conjunto muito grande de produtores, transportadores e operadores de gestão de resíduos que guardaram tudo para o último dia. Aquilo que poderia ter sido feito nos últimos seis meses de uma forma tranquila foi feito de uma forma abrupta. Um sistema informático, por muito robusto que seja, tem problemas quando todos se quererem registar praticamente à mesma hora. Às 11h começou a ter problemas de maior tempo de espera porque o sistema estava muito saturado. Eu estou convencido que hoje [ontem], amanhã [hoje], isso ainda pode vir a acontecer. Já contávamos com isso. Criámos uma disposição que permite que o trabalho seja realizado à mesma, através de um formato de papel que está disponível.

O documento disponível no portal da Agência Portuguesa do Ambiente (APA) não é um documento editável informaticamente e tem um carimbo de “guia provisória”. Como é que os gestores de resíduos devem proceder?

Preenchem normalmente. A única coisa é que o fecho não é automático para o operador de gestão de resíduos.

Mas terá de repetir o processo eletronicamente quando a plataforma estiver disponível?

Depende se o começou eletronicamente e não conseguiu fechar. Nesse caso, há de fechar eletronicamente à mesma. Se começou logo com papel, termina com o papel.

Disse que tinham acautelado a falha das e-GAR, acautelaram também formas de compensar os gestores de resíduos por não conseguirem fazer o trabalho?

Não. Mas ainda está por provar que não foram capazes de fazer o trabalho por causa da plataforma. O programa não caiu, não deu foi vazão com a rapidez daquele automatismo de carregar numa tecla e ter a resposta no segundo imediatamente seguinte. Mas eu poderia pôr a situação ao contrário: porque é que as pessoas, com tempo, não anteciparam o seu registo? Tiveram seis meses para o fazer. Para quem anda na gestão dos resíduos há muitos anos – e eu já ando há 40 -, não é uma matéria que seja suscetível de não ser previsível. Além disso, eles não têm prejuízo porque podiam sempre usar o papel.

Existe algum comprovativo que as empresas tenham de ter para acompanhar a “guia provisória”?

Quando as pessoas tiverem esse problema, em última análise, o operador final, que é o responsável por receber aquele resíduo e que tem de fechar a guia, tem a possibilidade de questionar a APA: “Quando é que teve problemas com a plataforma?” E a APA há de dizer “das tantas às tantas horas do dia tal tivemos problemas, confirma-se” ou “não tivemos problemas”. Se não houve problema temos de dizer que alguma coisa correu mal com aquele operador.

O bem que o Estado pretende com esta portaria compensa a possibilidade de falência de certas empresas?

Nós não acreditamos que a e-GAR seja motivo para falência de empresas. Não há nenhuma razão. Digo e volto a repetir, nós não criámos nada de novo. A única coisa que fizemos foi passar do papel para o mecanismo eletrónico, de resto não há nada de novo. Se uma empresa sobrevivia a fazer as coisas bem com a guia de papel há de sobreviver bem com a guia digital. Se me pergunta: “Há o risco dos que faziam mal ficarem insolventes?” Será que é bom para a economia ter agentes económicos que não se regem pelos princípios ambientais e de concorrência sã? Desse ponto de vista, estamos interessados que todos os agentes económicos cumpram a lei e as regras ambientais.

Publicado em: https://sol.sapo.pt/artigo/594968/carlos-martins-nao-acreditamos-que-a-e-gar-seja-motivo-para-a-fal-ncia-das-empresas-